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Mas, afinal, o que foi o Verão Quente?
O Verão Quente foi a ideia de que a revolução estava longe de terminada, mesmo depois de iniciados os trabalhos da Assembleia Constituinte, resultante das primeiras eleições livres, a fim de criarem as estruturas para a democracia em Portugal.
O Verão Quente foi quando o PCP tentou instituir uma ditadura de modelo soviético, com a curiosa ambição de fazer do nosso país a «Cuba da Europa Ocidental», orgulhosamente sós (faltava-nos os mares das Caraíbas; os piratas já nós tínhamos).
O Verão Quente foi quando a extrema-esquerda repudiou o imperialismo soviético do Barreirinhas Cunhal, tentando entregar o poder aos trabalhadores, acreditando na utopia da sociedade sem classes.
O Verão Quente foi quando a extrema-esquerda almejou expulsar, prender, ou até fuzilar burgueses, capitalistas e fascistas.
O Verão Quente foram governos provisórios a sucederem-se uns aos outros e manifestações a todas as horas, do dia e da noite, a favor e contra esses governos.
O Verão Quente foram cocktails molotov, assaltos e incêndios a sedes de partidos, pedradas, petardos, tiros e carros Cherman desgovernados pelas ruas.
O Verão Quente foram ocupações selvagens de casas, de estações de rádio e televisão, de anarquia nos quartéis, de sequestro da Assembleia Constituinte.
O Verão Quente foi quando o país se tornou num «manicómio em autogestão» e um governo se autossuspendeu, declarando-se em greve.
O Verão Quente foi a iminência da guerra civil.
Imagem daqui
As crianças do 25 de Abril estavam habituadas a ver militares armados, a incidentes que os envolvessem, a manifestações que descambavam para a violência e a assaltos e incêndios de sedes de partidos. Para elas, o processo revolucionário não constituía uma situação de exceção. Era a normalidade.
Nota: Esta série termina hoje, com a 16ª divagação abrilina, a 16 de Julho, dia do meu aniversário. Em 1975, completei a minha primeira década de vida, em pleno Verão Quente. E fui, pela primeira vez, ao Algarve e a Lisboa.
Força, força, companheiro Vasco
Nós seremos a muralha de aço
Era o verdadeiro culto de uma personalidade, Vasco Gonçalves estava na iminência de se tornar um «querido líder». Álvaro Cunhal, pelos vistos, não tinha ciúmes, talvez não visse qual era o mal de, em vez de nos tornarmos na «Cuba da Europa», nos tornássemos na «Coreia do Norte da Europa». É, no entanto, curioso verificar que a figura de Vasco Gonçalves inquietava um revolucionário como Gabriel García Márquez:
[Vasco Gonçalves] «É o único puritano em quem se pode confiar», disse-me um velho amigo seu, quando lhe manifestei a minha inquietação pelo facto de o primeiro-ministro só beber água mineral, mesmo nas festas mais íntimas.
Resta saber o que tinha o génio da literatura contra a água mineral.
Os comunistas, que se diziam defensores da liberdade, menorizavam a importância das eleições, a expressão da vontade do povo. É verdade que se tratava de uma situação especial. Mas, se Álvaro Cunhal estava bem ciente daquilo que dizia, a maior parte dos jovens esquerdistas não o estava. Acreditavam em utopias e pretendiam um corte radical com a sociedade antiga, recusando tudo o que fosse ordem estabelecida.
Anda, a gente vai começar
A gente já começou
A gente vai acabar
Aquilo que começou
A gente vai começar
Era uma dinâmica sedutora. O Portugal de 1975 tornou-se num paraíso para revolucionários estrangeiros, jovens europeus, que vinham à procura de bebedeiras e borgas sexuais. Que os portugueses se tinham libertado de uma ditadura, era o que menos lhes interessava. Eles não faziam ideia do que era uma ditadura.
A Assembleia Constituinte dispunha de uma esmagadora «maioria burguesa»! Gabriel García Márquez descreveu o desalento e o receio dos revolucionários:
Em Portugal, muitos acreditam que o primeiro grande erro que a revolução cometeu foram as eleições de 25 de Abril [de 1975]. Foram realizadas contra a vontade do partido comunista (PCP), que só obteve 12% dos votos (…) As análises mais sérias concordam, sem dúvida, que estes resultados não correspondem à realidade, porque numa situação como a actual em Portugal não é possível aferir a realidade política pela quantidade de votos. «O PS obteve mais votos, mas o PCP tem uma maior força política devido à sua real implantação nas bases», disse-me um professor universitário. «Além disso, a direita destronada, mais hábil e inteligente, orientou os seus votos para o socialismo, ou seja, escondeu-se dentro da legalidade eleitoral para pôr um travão na revolução».
«Caímos numa armadilha tola», disse-me um membro do Conselho da Revolução. «As eleições foram prometidas na euforia do primeiro momento, sem um conhecimento real das condições do país, e não as realizar poderia ter comprometido a credibilidade do MFA». Respondi-lhe que a revolução cubana, apesar das pressões vindas de todos os lados, não se deixou cair nessa armadilha.
No Portugal dos cravos, insultava-se de maneira diferente. «Fascista» e «reacionário» passaram a ser os piores insultos, substituindo os «cabrões» e os «filhos da puta».
O conceito de «burguês», como sinónimo de capitalista explorador, também se tornou numa palavra maldita. Tudo o que não fosse a favor do «processo revolucionário em curso», mas também tudo o que lembrasse a direita, o fascismo, o conservadorismo, a ordem antiga, era «burguês», numa deturpação da palavra de origem medieval usada para definir o habitante do «burgo», ou seja, da cidade protegida por muralhas. Que os «burgueses» tenham adquirido conforto na vida, teve a ver com a decadência da nobreza medieval e a expansão do comércio. Ainda hoje, na Alemanha, Bürger é o vocábulo usado para «cidadão». No Portugal do Verão Quente, representava um insulto.
As crianças do 25 de Abril foram expostas à pornografia antes de saberem como se faziam bebés.
Hoje em dia, é difícil imaginar encontrar revistas pornográficas à vista por tudo o que é quiosque, livraria e supermercado. Em todas as ruas, em todas as esquinas, em todas as bancas de vendedores ambulantes, em todas as feiras, se deparava com meninas ostentando mamas, rabiotes ou vaginas (estas, diga-se de passagem, costumavam estar cobertas por uma boa camada de pelos púbicos). Lá se escarrapachavam elas nas montras e nos escaparates, logo à entrada, até em estabelecimentos onde os pais iam com os filhos comprar os manuais escolares, ou com filhos ainda mais pequenos, comprar um inocente chupa-chupa, ou gelado.
Os filmes pornográficos proliferavam em muitos cinemas, assinalados por conterem «cenas eventualmente chocantes». Naquela época, ver filmes pornográficos era sinal de vanguardismo, de que se acompanhavam os novos tempos. Os adultos, à semelhança de adolescentes em situação de enfarte de hormonas, vangloriavam-se de já ter visto o Garganta Funda, o Emanuelle, ou outros, cujos títulos foram esquecidos. Portugal vivia, enfim, a revolução sexual, arrastada pela dos cravos.
Mas não se sabia distinguir a pornografia barata de filmes que eram, apenas, ousados, como O Último Tango em Paris. Esta famosa película, realizada por Bernardo Bertolucci e com a participação de Marlon Brando, tornou-se num dos símbolos da liberdade de Abril. Provocava filas enormes à porta dos cinemas e a Vera perdeu a conta às vezes que ouviu mencionar esse título, todos os dias, a todas as horas. Quando menos se esperava, lá vinha O Último Tango em Paris! Os adultos andavam completamente obcecados.
- Então, agora, soltam-se assim os presos, sem mais nem menos?
Para a mãe da Vera, uma prisão era uma prisão, um local onde se mantinham os criminosos, impedindo-os de molestarem as pessoas de bem. Não sabia distinguir prisões convencionais das políticas, onde se encarceravam pessoas, cujo único «crime» fora lutar contra a ditadura.
Também o pai foi atacado por um certo receio. Embora explicasse que aquela gente estava presa por ter contestado o regime, perguntava-se, igualmente, se, no meio deles, não estariam outro tipo de criminosos. Principalmente, os comunistas assumidos causavam-lhe medo.
A pequena Vera, porém, foi tomada por uma espécie de deslumbre, perante as imagens de pessoas a serem recebidas por familiares e amigos, com abraços tão sentidos, expressando tanta alegria. Não lhe parecia importante saber de que gente se tratava. Encantava-a a maneira como manifestavam o amor, ou a amizade, que os unia, extravagâncias que não se usavam em sua casa.
Sentiu inveja! Sentiu desejo de estar no meio daquela multidão. Sentiu vontade de surgir e de ter pessoas à sua espera, que a abraçassem com o mesmo calor. Eram sensações que mal conhecia. Perguntava-se como podiam os seus pais desdenharem de tais manifestações de alegria.
Professora, de trinta e poucos anos, casada, com dois filhos… Sem consciência de que vivera numa ditadura!
- Nunca notei que não houvesse liberdade. Eu sempre fiz o que quis!
Não admira que as imagens que se viam na televisão, nos dias imediatos ao 25 de Abril, de pessoas pelas ruas, muito felizes e libertas, em manifestações espontâneas, lhe fizessem confusão.
A situação, em casa da Vera, tornava-se caricata. As crianças tinham obviamente muitas perguntas e o pai debitava verdadeiras sessões de esclarecimento, frente à televisão. Ele sempre gostou de uma plateia perante si, a venerá-lo, o que, aliado à euforia da revolução, contribuía muito para o seu bom humor. O mais interessante é que estas sessões de esclarecimento se dirigiam, não tanto aos filhos, mas à mãe, que tinha tantas, ou mais, perguntas, do que as crianças. Estas acabavam por aprender por tabela. O pai da Vera nunca se teria dado ao trabalho de explicar aquilo tudo se a esposa estivesse dentro do assunto e os únicos a esclarecer fossem os filhos.
Quando Mário Soares e Álvaro Cunhal regressaram do exílio, a senhora disparou:
- Mas quem é esta gente?
A mãe da Vera seguira o início da Simplesmente Maria, uma radionovela transmitida pela Rádio Renascença, em 1973/74: uma moça de província foi para Lisboa trabalhar como criada de servir e acabou por engravidar de um qualquer marmanjo que por lá conheceu. A mãe tentou explicar-lhe porque é que aquilo era tão grande pecado:
- É pecado, uma coisa muito feia, uma moça solteira engravidar.
- Porquê?
- Porque é.
- Mas os namorados não dão beijinhos?
- Dão.
- E os bebés não são feitos com beijinhos?
…
- Só as senhoras casadas é que têm filhos – acabou a mãe por dizer, de voz um pouco alterada, como sempre fazia, quando tentava emanar autoridade. - Onde já se viu, as meninas solteiras terem filhos? É uma coisa muito feia.
- Mas tu gostas da Maria da radionovela e ela teve um filho solteira.
- Está caladinha e não digas mais disparates!
Imagem daqui
Não obstante E Depois do Adeus ser considerada uma balada inofensiva, os seus versos encerram muito do espírito do 25 de Abril. Provocaram celeuma em lares familiares, ao referirem uma intimidade entre homem e mulher só aceite dentro do casamento religioso, o único aceite em sociedade e que era indissolúvel, perdurava até à morte de um dos cônjuges.
Mas o parzinho da canção, depois de ter partilhado cama e mesa (principalmente, cama) separava-se, ia cada um para seu lado! Mentes bloqueadas por doses maciças de convenções e preconceitos entravam em curto-circuito.
Depreende-se que a mulher teria abalado, ou seja, a iniciativa de acabar com a relação teria sido dela, enquanto ele reconhece:
Tu te deste em amor
Eu nada te dei.
Estará aqui implícita a ideia de que a mulher já não se contentava em poder dizer que tinha um marido? Que se atrevia a exigir algo em troca? Empenho, interesse, paixão, quiçá, satisfação sexual… Ideias bem revolucionárias, no Portugal ainda salazarista!