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Divagações Abrilinas (6)

por Cristina Torrão, em 09.05.13

As imagens da guerra do Ultramar eram-lhes familiares. Assim como as mensagens de Natal, a que a mãe da Vera assistia, de lágrima no olho, exprimindo o medo por o filho pequeno, um dia, ter de ir também combater os terroristas. Os terroristas eram os pretos, claro. E havia a história de uma amiga da avó da Vera que tinha perdido o filho nessa guerra. Visitaram-na uma vez, tinha lá a fotografia do jovem, num passe-partout, em cima de uma cómoda. Um militar, como os que a miúda via na televisão. A mãe disse-lhe:

- Olha, que bonito que era! Já viste?

Como se o facto de ele ser bonito aumentasse a indignação por ele ter morrido lá longe, na flor da idade, como tantos outros, bonitos e feios, gordos e magros, altos e baixos.

 

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Divagações Abrilinas (5)

por Cristina Torrão, em 02.05.13

A certa altura, a mãe foi ter com os filhos. Mostrou-se consternada. Disse-lhes que o Presidente da República e o Presidente do Conselho de Ministros se encontravam sequestrados por militares, que exigiam a sua rendição. Estava cheia de pena do almirante Américo Thomaz, «já tão velhote, coitado do senhor», e do Professor Marcello Caetano, «pobre senhor», que viviam horas de terror, com armas apontadas contra si, sob a ameaça: «ou te rendes, ou disparamos»!

A miúda tentava imaginar o Presidente do Conselho sentado à sua secretária, rodeado por militares de armas em punho. Perguntou à mãe porque é que isso acontecia, mas não obteve resposta. Na verdade, a mãe também não sabia! Não fazia ideia de que, dependesse do «pobre senhor» Marcello Caetano, a fragata Gago Coutinho, a Força Aérea e os carros de combate de Cavalaria 7 teriam rebentado com o Terreiro do Paço, impedindo o capitão Salgueiro Maia de ter chegado ao Largo do Carmo, dando início ao episódio mais simbólico da revolução.

O ambiente em casa dela estava longe de qualquer euforia revolucionária. Receio seria a palavra mais apropriada. E a consternação da mãe era visível, ao assistir ao transporte do Presidente do Conselho cessante numa viatura fechada, como um vulgar criminoso, no meio da populaça em fúria.

Era o desmoronar de um mundo!

 

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Divagações Abrilinas (4)

por Cristina Torrão, em 25.04.13

- Qual é a primeira sensação, ou o primeiro sentimento, que te atinge, quando pensas no dia 25 de Abril de 1974?

Ela fecha os olhos.

- Medo.

Depois de um curto silêncio, digo:

- Compreendo. Será assustador, para uma criança, ver militares armados e carros de combate pelas ruas…

Ela abre os olhos:

- Não. A culpa não foi dos militares que nos trouxeram a liberdade. A culpa foi da estúpida da minha professora primária.

 

A aula não tinha começado há muito tempo, quando a professora foi chamada à Diretora. Ao regressar, lançou, muito aflita, a caminho da sua secretária e sem olhar para as alunas:

- Ide-vos embora, para casa, hoje não há escola!

Além de ansiosa, parecia muito irritada. Nas meninas, a perplexidade. Perguntavam-se se tinham aterrado no filme errado. Aquele dia havia começado igual aos outros e, de repente, dava-se uma viragem que não estava prevista no guião.

- Não me ouvistes? Guardai as vossas coisas e ide para casa!

A miúda não sabia se a mestra fingia aquela aflição, ou se estava realmente borrada de medo. O certo é que as alunas, já muito inquietas, desejavam uma explicação daquela em quem confiavam. Mas ela, atrás da secretária, arrumava os seus pertences.

– Isto até pode dar em guerra… Não sei. Não sei o que se vai passar. Uma chatice, uma grande confusão. Ide para casa!

Desandou dali, abandonando-as à sua sorte.

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Naquela noite...

por Cristina Torrão, em 24.04.13

 

Era uma quarta-feira, tal e qual como hoje. O apito inicial soou à hora a que publico este post. O meu pai alimentava esperanças de que, passados dez anos, o seu clube repetisse a proeza: ganhar a Taça das Taças. Mas a primeira mão das meias-finais, em Alvalade, não correra bem: empate 1-1 com o Magdeburgo, da República Democrática Alemã, um dos regimes de proa da Europa de Leste.

O Sporting partiu desfalcado para o encontro, não contava com dois dos seus melhores jogadores, Dinis e Yazalde, ambos lesionados. Mal sabia a equipa que partia do Portugal da ditadura para regressar ao Portugal dos cravos. E não deixa de ser interessante que fosse derrotada, nessa noite de todas as noites, por um clube de um país comunista, uma ideologia que tanto agitaria o Portugal saído da revolução. Também o imperialismo soviético esteve perto de derrotar a nossa jovem e ainda frágil democracia.

 


Os minutos finais do encontro deram cabo dos nervos. Ao fim de 75 minutos, perdíamos por 2-0. Já nos conformávamos com a derrota, quando Marinho, a 12 minutos do fim, reduziu a desvantagem para 2-1. Renasciam as esperanças. Marcando mais um golo, o Sporting passaria à final!

Sofríamos em frente da televisão, quando Tomé, entrado perto do fim do encontro, falhou um golo que parecia certo. Ao apito final, instalou-se o desespero.

 


Eu tinha oito anos. E não sabia o que mais me oprimia: se a minha própria desilusão, se a do meu pai. Fomo-nos deitar com um imenso nó na garganta, sem sonhar que acordaríamos num outro país.
À equipa do Sporting, acompanhada pelo saudoso João Rocha, estava reservada uma autêntica odisseia. Deixaram a malfadada Magdeburgo de autocarro, logo aguentando os incómodos ligados à passagem da fronteira entre as duas Alemanhas. Controlos obsoletos, de quem insistia na cortina de ferro, esse muro invisível, concretizado fisicamente em Berlim. Mal sabia o plantel do clube que, no seu país, se tentavam destruir outro tipo de muros.

Chegados a Frankfurt, atingiu-os a perplexidade: o aeroporto de Lisboa estava cercado e fechado ao tráfego! Acabaram por arranjar um voo para Madrid, de onde partiram, de autocarro, em direção à fronteira do Caia. Mas esta revelou ser mais uma barreira intransponível, o MFA fechara todas as fronteiras. Tiveram de pernoitar em Badajoz, alguns, no autocarro, por não terem encontrado lugares nos hotéis.

 

Só a 26 de Abril a situação se desbloquearia.
E nós?
Em nós, renascera a esperança, no deslumbre da liberdade.

 



Nota: O bilhete representado está ou esteve à venda neste site. Embora não o consiga visualizar, foi para lá que o link da imagem me enviou.

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Divagações Abrilinas (3)

por Cristina Torrão, em 18.04.13

 

Aos sábados, as alunas cantavam o hino nacional, de pé, viradas para os retratos do Presidente da República, Almirante Américo Thomaz, e do Presidente do Conselho de Ministros, Prof. Marcello Caetano, pendurados na parede, sobre o quadro de ardósia. O sábado era um dia especial, de preparação para o fim-de-semana, e não se faziam contas nem ditados. As meninas começavam por se dedicar à malha, ao croché e aos bordados. Quando a professora julgava oportuno, pousavam os lavores e cantavam o atirei o pau ao gato, ou o coelhinho que comeu uma grande cenoura, ou o balão do João.

Gostavam daquilo. Num tempo em que a televisão a preto e branco era o cúmulo da tecnologia e as crianças apanhavam um tabefe por cada grito mais estridente, ou uma reguada por cada erro ortográfico (sem contar as vezes em que não sabiam porque é que apanhavam), poder cantar, na sala de aula, era uma autêntica extravagância.

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Divagações Abrilinas (2)

por Cristina Torrão, em 11.04.13

Uma solteirona estava proibida de manter contactos íntimos com homens. Usava-se muito a expressão «meter um homem em casa». Quando a mãe dela falava de uma solteira que «meteu um homem em casa», mirava a filha de lado, num misto de intimidação e desconfiança, como se a miúda, com oito anos, já se pusesse com ideias dessas. Falava-se em «meter um homem em casa» com mais indignação e repulsa do que se falava de um recém-nascido abandonado numa lixeira, ou de um marido que tivesse matado a mulher à pancada.
Ter oito anos, em 1974, implicava não fazer ideia de que existiam relações sexuais. E, por mais voltas que desse à cabeça, ela não alcançava a razão para tanto escândalo à volta da mulher que «metia um homem em casa».
Antes do 25 de Abril, não havia classes mistas, as meninas aprendiam e brincavam separadas dos rapazes. No recreio da escola havia um muro. Saltar para o lado dos rapazes estava, para meninas da primária, ao nível de «meter um homem em casa».

 

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Divagações Abrilinas (1)

por Cristina Torrão, em 04.04.13

As crianças do 25 de Abril aprenderam a tratar a revolução por tu. As manifestações, os comícios, as palavras de ordem, os cravos vermelhos, o MFA, até a pornografia, que lhes enfiavam olhos adentro, em qualquer esquina, faziam parte das suas vidas, como a escola, as brincadeiras com os amigos, ou as visitas à família. A Grândola Vila Morena, o Somos Livres, ou A Boca do Lobo passaram a ser substitutos para O Balão do João e o Atirei o Pau ao Gato. Para gáudio de alguns parentes e irritação de outros. Duvido que tenha havido outra época em que se cantou e se ouviu tanta música portuguesa.

 

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