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A caminho do dia 11 de Dezembro (2)

por 2711, em 22.11.10

Descia as escadas do colégio e ia a correr para casa. Uma fatia de pão com Tulicreme fazia a rotina daquele lanche, só interrompida quando a minha mãe fazia marmelada caseira, ou aquele doce de tomate com cheirinho a canela. “Adeus mãe, vou já!”

O caminho para a Biblioteca era fácil. Descia o que restava da Rua de Serpa e entrava na Rua que tem outro nome, mas que na minha vida ficará para sempre a chamar-se Rua da Jopal. Naquele tempo, aquelas duas ruas estreitinhas ainda tinham trânsito e eu tinha de seguir sempre em cima do magro passeio, e às vezes precisava mesmo de me deixar engolir pelos portados das casas e das lojas enquanto passavam os carros maiores.
Ao fundo, entrava na Praça e virava à direita. Ao longe já se viam os canhões que ainda hoje marcam a entrada da Biblioteca Municipal. Subia os degraus dois a dois, chegava à varanda, acenava à D. Dolores sempre no seu Posto de Turismo e entrava, enfim, na Biblioteca.
Fechem os olhos. Não sentem? É a Biblioteca. O caminhar silencioso dos funcionários, o virar vagaroso das páginas, o deslizar dos livros nas prateleiras, o percorrer cuidadoso dos dedos nas fichas do catálogo, o cheiro característico dos livros, o aconchego daquela atmosfera preservada dos males do mundo.
Era sempre recebida com um sorriso, e ao mesmo tempo um dedo nos lábios. “Hoje não podes fazer barulho!”
“Claro que não”, assegurava eu. “1530”. O número era dito em uníssono por mim e pelo funcionário, habituado à minha visita diária. “Deixa aí em cima, podes ir escolher”.
E pronto, finalmente, o resto do mundo tornava-se distante e nublado. Só restava eu e as prateleiras de livros, percorridos um a um com a ponta dos dedos. Já li, já li, já li… Este deve ser engraçado… terei de ler este? Não gosto dele, mas já li os outros…
De vez em quando, ia pedinchar ao balcão. “Posso escolher da outra prateleira? Já li aqueles todos!”
O pedido era sempre excepcionalmente concedido, “mas não contes a ninguém porque para a tua idade são só essas três prateleiras de baixo.” Ah, admirável mundo novo! Livros só de linhas e linhas de muitas letras seguidas, vidas inteiras à minha espera.
Com três novos mundos por descobrir debaixo do braço, descia as escadas calmamente, saboreando por antecipação o momento em que, com a segunda fatia de pão com Tulicreme na mão, começaria a ler o primeiro livro.
“Mãe, se eu tivesse a sorte de trabalhar ali… Já podia ler todos os livros que quisesse, escolher à minha vontade. Acho que os lia todos…”
Enquanto o dia era dia, sentava-me num banquinho que o meu pai mandou fazer à medida do vão da janela. O mundo corria lá fora, carros e pessoas, vozes e frases que pairavam no ar, enquanto eu ficava ali aninhada, o olhar correndo de uma linha para outra, os dedos da mão direita já segurando no canto da página, para não perder tempo, para não perder o nexo, para não parar de ler nem por um instante. E depois, enroscada no sofá, ao lado do candeeiro, perante o espanto da minha avó “Tu gastas a vista, filha, não leias tanto!”.
Muitos anos mais tarde, fui surpreendida com um desafio para ocupar o lugar de Bibliotecária. Contei à minha mãe, convicta de lhe estar a dar uma notícia inesperada, mas ela respondeu com o pragmatismo que a caracteriza: “Sempre soube que, mais cedo ou mais tarde, tu ias lá parar…”.
As mães sabem sempre tudo.
Zélia Parreira - Açúcar Amarelo

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9 comentários

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De Kássia Kiss a 22.11.2010 às 18:22

É sempre bom ver que alguém realiza o seu sonho

“Tu gastas a vista, filha, não leias tanto!”
Presumo que hoje em dia já saiba que ninguém gasta a vista a ler; nem ninguém estraga os olhos a ler às escuras (pode ser cansativo, mas não estraga nada) ou por trás das repas. Era isso que me diziam, na minha adolescência. Tinha uma franja comprida e diziam-me: "Estragas os olhos assim com o cabelo à frente"; até me disseram: "Ficas vesga"!!! Pfff, tudo mentira!
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De João António a 22.11.2010 às 18:39

Uma excelente colaboração, num lindo texto
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De manuel gouveia a 22.11.2010 às 19:48

Um belo texto. Os alentejanos habituaram-nos às delicias dos ingredientes mais pobres. Com pão seco e ervas aromáticas se faz uma iguaria. Com as memórias de infância se serve um momento de sonho.

Mas só aqui no 2711. Ainda bem que eu tive a ideia de suscitar estas colaborações...
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De Cristina Ribeiro a 22.11.2010 às 20:10

Lindo!...
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De Daniel João Santos a 22.11.2010 às 20:31

Um texto de nos encher a alma. Obrigado Zélia.
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De Zélia Parreira a 22.11.2010 às 22:22

Vocês estragam-me com mimos...
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De analima a 23.11.2010 às 01:09

Também gostei muito do texto. É bom perceber o quanto gosta da "sua" biblioteca. E deve ser um privilégio trabalhar num local tão cheio de memórias. :)

Boa ideia, de facto, Daniel.

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